Cibele Maria de Souza Rocha

Socóloga, formada pela USP, com especialização em Planejamento e Projetos no Centro de Estudos para a América Latina da ONU-Cepal. Trabalhou nas áreas de Saúde, Educação, Promoção Social e Serviços Públicos nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e Goiás, e em projetos de assistência a pessoas carentes na capital e no interior de São Paulo.


“MEU AMIGO ANTÔNIO MARCOS PIMENTA NEVES”

“Sou amiga do Antônio Marcos há 53 anos, desde os 12 dele e desde os 7 meus. Meu amigo de infância, de adolescência, de vida adulta, de idade madura. Nada ao longo dessa amizade que insisto em cultivar e da qual ele se desgarra, mesmo contra a vontade, imerso em uma tristeza intangível, entregando-se ao abismo da autocondenação, diminuiu o respeito e admiração que tenho por ele. Sou amiga do Antônio Marcos agora como fui antes daquela trágica tarde de 20 de agosto de 2000.

“Trabalhador competente à compulsão, homem respeitado, cidadão de conduta irrepreensível – isso é público, meu testemunho não é único.

“A tragédia que envolveu a Sandra e o Antônio Marcos cancelou o destino de um, alterou dramaticamente o destino do outro, mas não mudou a essência do meu amigo. A tragédia não anula sua boa índole, seu caráter correto, seu temperamento voltado para a generosidade.

“Meu amigo confessou o crime, é réu primário – nada em que eu influ, nada em que eu atue.

“Mas tenho que me opor quando o diminuem, quando lhe subtraem as virtudes, quando sobrepõem ao seu perfil traços de predisposição à maldade que não lhe pertencem. Meu amigo cometeu o crime, exclusivamente este crime, naquela hora exata, naquele segundo de total desequilíbrio. Nada em seu comportamento anterior ou posterior sequer sinalizou qualquer propensão à violência. Absolutamente nada nos seus hábitos, nos seus gestos, nas suas atitudes do quotidiano, nas suas decisões de vida pessoa, absolutamente nada poderia fazer supô-lo capaz de trilhar caminhos de violência, de maldade, de imposição de sofrimento a outro.

“Meu amigo nunca elevou a voz acima do tom dos que usam o som moderadamente. Se, em uma roda, alguém ou alguns elevavam a voz, meu amigo ficava constrangido e se afastava.

“Nunca tratou com descortesia gente humilde. Quanto mais pobre a pessoa, mais meu amigo duplicava a gentileza no trato. Muitas vezes, ao longo da vida, tive a impressão que meu amigo ia pedir desculpas a mendigos com quem cruzávamos em horas tardias saindo de redações de onde eu ia regata-lo em meus dias livres e jovens.

“Nunca Antônio Marcos consentir em sair dos gestos controlados, contidos, supervisionados por ele mesmo. Sempre absorvendo sua tensão interna, intensificando o autocontrole, aperfeiçoando a polidez, cultivando a elegância. Meu amigo sempre me deu a impressão de estar temeroso de incomodar, dono de uma timidez que muitos confundem com arrogância. Meu querido amigo, tão prisioneiro de si mesmo.

“A timidez do meu amigo não diminuiu em nada; mantém-se igual. Nenhum artifício da vida adulta, nenhum traquejo social, nada resolveu a falta de jogo de cintura que meu amigo tem com situações embaraçosas. Acho ingênuo que até hoje ele tenha tanta dificuldade em dar uma negativa, fica explicando e reexplicando, quando basta dizer não e ponto. Meu amigo, tão corajoso na defesa da verdade e da honra, sua e dos outros, teme qualquer indiscrição em sociedade, treme diante de um desvendamento pessoal perante um grupo. Nisso é igualzinho a quando éramos crianças, mudou exatamente zero.

“Meu amigo – que hoje parece achar não ter direito à vida – nunca deixou de ser crítico perante atitudes de falta de caráter, de covardia, de falta de solidariedade. Sempre se posicionou como adversário frontal das concessões medíocres, das negociações duvidosas por benefícios individuais, da avareza, da vilania, da mesquinhez. Ainda acho extraordinário que eu nunca o tenha surpreendido cedendo ante o que lhe parece aproveitamento de oportunidades menos legítimas.

“Mas meu amigo nunca dirigiu sua intransigência para a fragilidade de ninguém, seja para um companheiro de menores recursos, seja para um colega mais limitado, seja para um conhecido em falta involuntária. Para esses casos sempre reservou atendimento generoso, sempre se prolongou no diálogo, sempre buscou soluções ao seu alcance ou até fora dele, sempre dispensou uma avaliação compreensiva, sempre ajudou. Muitas vezes fez, com discrição e sigilo, o trabalho no lugar de outras pessoas, evitando que fossem prejudicadas.

“ Se nunca vi meu amigo flexionando seus critérios, moldando-os pela vida em lugar de talha-los por sofisticadas elaborações intelectuais, também nunca o flagrei, nem nunca o soube, negando generosidade a pessoas em quem reconhecesse necessidades legítimas.

“No entanto, meu amigo matou a Sandra. Nada que eu compreenda, nada que eu explique. Não há palavras que eu use que digam o que eu quero, só tenho lamentos.

“No meu amigo, todos os motivos dos meus lamentos terão sido vivenciados desde antes do primeiro instante da tragécia; tudo o terá dilacerado a partir da tragédia.

“Acabo sempre por desenvolver a reflexão que outro coração, outra alma terão estado presentes naquele instante; outra dupla de sentimento e ação terá nascido no íntimo do meu amigo. Sua consciência terá sido oprimida, seu pensamento obscurecido, sua natureza anulada. Alguma coisa tresloucada, desconhecida, terá ocorrido a meu amigo, pelo lapso de segundo que tenha pertencido ao insolúvel da morte de Sandra, terá estado ausente dele mesmo.

“Só assim convivo com o fato inviável e inverossímil de meu amigo ser réu confesso da morte da Sandra. Só assim me recomponho. Só assim, repito, enriqueço a amizade enquanto meu amigo me bloqueia o convívio com múltiplas manifestações de total desesperança da vida.

“Meu amigo cometeu um crime que confessou de imediato e por vontade própria. Mas meu amigo não é um criminoso.


Assinado:
Cibele Maria de Souza Rocha