Washington Novaes

Escritor, jornalista, documentarista de televisão, é colunista do jornal O Estado de S. Paulo e comentarista da TV Cultura. Embora tenha ocupado os mais diversos cargos na imprensa, Washington Novaes é especialmente admirado hoje em dia, no Brasil e no exterior, pelos seus artigos e comentários sobre questões ambientais. Ele e Pimenta Neves se conhecem desde os fins da década de 50 e foram colegas no Estadão, na Folha de S. Paulo e na Gazeta Mercantil. Washington é uma das testemunhas de defesa de Pimenta. O artigo reproduzido a seguir foi publicado pela Folha de S. Paulo em 19/09/2000.


O amigo Pimenta

O extraordinário escritor goiano – embora tenha nascido em Patos de Minas – Carmo Bernardes costumava dizer que não se deve desejar viver muito, ir além de certos limites na velhice. Porque se corre o risco de testemunhar episódios insuportavelmente doloridos. Citava a morte de filhos, a perda de grandes amigos e outros infortúnios chocantes.

De volta de um mês a trabalho no exterior, não paro de pensar no Carmo. Porque não me sai da cabeça a tragédia em que se envolveu o amigo Antônio Marcos Pimenta Neves, o Pimenta, ex-diretor de Redação de “O Estado de S. Paulo”. O sangramento não cessa.

Dificilmente alguém explicará a seqüência que o levou a tirar a vida de Sandra Gomide. É tarefa para dramaturgos do porte de Sófocles, Shakespeare, E. Albee, Eugene O’Neill, Tennessee Williams. Dos que foram capazes de descer aos porões da alma humana e entender seus suplícios.

Nem se trata de condená-lo ou absolvê-lo. Ele mesmo, na carta que escreveu às filhas, disse sem rebuços haver arruinado duas vidas – a dele e a dela -, qualquer que seja o resultado do julgamento a que será levado.

Trata-se apenas de dar um depoimento de amigo de uma vida inteira, contribuir com uma gota d’água para a catadupa de informações em torno do personagem, nem sempre verdadeiras.

Conheci o Pimenta nos últimos anos da década de 50, ele, um jovem e agitado repórter da “Última Hora” paulista, profundo conhecedor do setor estudantil, que cobria. Sabia de cada um dos líderes das muitas facções, prenunciava os movimentos que se seguiriam, previa dissensões e rupturas. Já era um apaixonado pela profissão – meticuloso, exigentes, irônico e impaciente como seguiria vida afora.

Estivemos muito próximos na década seguinte, quando Cláudio Abramo nos chamou os dois e mais o Alexandre Gambirasio para sermos seus editores-assistentes na reformulação que então se iniciava nesta Folha. Pimenta teve papel importante nas transformações do jornal. Depois tomamos rumos diferentes, eu no Rio, ele em São Paulo, onde seguiria no variado périplo de Redação em Redação.

Casou-se com a doce Carole, foi para os Estados Unidos, teve as filhas gêmeas, fez um trabalho brilhante como correspondente de vários jornais até optar por ser consultor do Banco Mundial.

Encontrei-o no início da década de 90, em Washington, quase entediado no banco, mas feliz em sua linda casa nos subúrbios da capital, cercado de livros, árvores, esquilos e cavalos (esses, uma de suas paixões). Poderia ter-se aposentado e vivido em sossego ali. Não quis. Preferiu retornar ao Brasil e à sua paixão maior, o jornalismo.

Reencontramo-nos logo depois dessa volta, em 1995, na “Gazeta Mercantil”, onde, a seu convite, fui ocupar um espaço semanal (não quis a chefia da Redação, para a qual me convidara, porque significaria abdicar da opção por outros espaços, na profissão e na vida). Pimenta liderou na “Gazeta” um período brilhante no qual a cobertura ampliou-se a ponto de transformar o jornal econômico, especializado, em publicação capaz de satisfazer todas as necessidades de seu antigo público e do novo, altamente qualificado, que ganhou.

A seu convite, acompanhei-o na passagem para “O Estado de S. Paulo, em 1997, de novo para ocupar um espaço privilegiado. E tenho um depoimento a dar. Como autor de artigos assinados, jamais sofri dele qualquer restrição, de tema ou de tratamento, embora com freqüência divergíssemos frontalmente.

Dois ou três dias antes de ir para o exterior, eu tivera notícia de seu pedido de demissão do cargo e do jornal. Telefonei-lhe, mas a secretária me informou que o episódio já estava superado. Mais tarde ele telefonou. Muito deprimido, falou dos três dramas que vivia – a ameaça de perda da visão (eu insistia para que viesse a Goiânia, onde vivo, que é um centro de excelência em oftalmologia procurado por gente famosa no Brasil – Jorge Amado, Oscar Niemeyer – e fora); a doença da filha e a demissão de Sandra do jornal, que ele consumara. Prometi-lhe fazer o que pudesse – pensar muito nele e torcer por ele, rezar mesmo.

No exterior, alguns dias depois da tragédia em Ibiúna, dela tive notícia.

Agora o Pimenta está atrás das grades de uma cela minúscula. Imagino seu desespero, impedido de qualquer iniciativa – ele, um voluntarioso e impaciente. Sofro com ele, à distância. E mergulho em conjeturas sobre o seu gesto. Inúteis. Não o decifrarei nem devolverei a vida a Sandra.

Na manhã em que escrevo este artigo, depois de uma caminhada pelos arredores da minha casa em Goiânia, passei por duas mulheres do povo que conversavam por entre as grades de um portão fechado, ambas com as mãos cerradas em torno das barras de ferro. No momento em que emparelhei com elas, a que estava do lado de fora dizia à outra: “Eu é que não vou largar o meu destino na mão dos outros”. E a de dentro respondia que “nosso destino sempre está nas mãos dos outros, gostando ou não gostando”.

É verdade. Estamos ligados a tudo e a todos, gostemos ou não, queiramos ou não. Somos solidários com tudo, como lembrava Sartre. É uma solidariedade de fato, não moral – tal como ele descobriu no campo de prisioneiros durante a guerra.

A Sandra, o Pimenta, o jornal, a morte dela, o sofrimento dele, minha perplexidade e impotência à distância. Onde começa isso tudo? Terminará algum dia?


Assinado
Washington Novaes
Folha de S. Paulo, 19/09/2000